23/10/2012

alinhamentos cósmicos e outras trivialidades

Quando era pequeno, o meu pai batia-me com vergastas no cocuruto, dizia que há meninos a morrer à fome em países longínquos, obrigava-me a comer a carne e o arroz, mesmo que me custasse, mesmo que estivesse há mais de meia-hora a mastigar a carne e aquilo estivesse tão mal passado e tão mole, que já só sentia saliva e sabor a coisa nenhuma rente à língua e aos dentes, mesmo que fosse juntando arroz e conseguisse engolir a pasta de arroz, primeiro, e a carne triturada continuasse ali, a dar-me vontade de vomitar, mesmo que bebesse água só para sentir pedaços de carne solta a boiar dentro da boca. Os meninos morriam à fome longe de mim e eu pensava em mandar-lhes o meu bolo alimentar, mas pensar isso era injusto e infantil. Era o que me apetecia, ser injusto e infantil, com os olhos cheios de água, com a boca cheia de água, a carne mal triturada a boiar na água, dentro da boca, distrair-me com os cortinados (no verão, umas coisas de renda com peixes, no inverno, cortinas pesadas com patos amarelos e laranja), distrair-me com a rádio, para não ligar às porradas no cocuruto, que magoavam e me davam vontade de vomitar. Nunca pensei "o meu pai é uma besta", pensava sempre "os meninos da minha idade estão a morrer à fome em África, na Ásia, na América do Sul", sem nunca saber muito bem onde era a África, a Ásia, a América do Sul, a imaginar de forma nítida os meninos da minha idade, de barrigas inchadas, a berrar, enquanto eu, dentro de um vidro inquebrável, vomitava a carne mal triturada e me ria nas suas caras, sem me aperceber, quando a minha vontade era cuspir a comida para as mãos e oferecê-la a todas as crianças da minha idade que morriam de fome.

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