07/01/2013

Cândido não precisava de cadeiras

recordo-me por vezes de um homem que o meu pai matou, à noite, há muito tempo atrás. esfaqueou-o no pescoço e depois foi-se embora desse quarto. era noutra altura, numa casa grande e quase desabitada, escura, com as molduras tortas, nas paredes, a tapar manchas de bolor.
o homem ficou no chão, com a testa encostada nos tacos de madeira, agarrado ao pescoço, os dedos e as mãos sujos de sangue, os olhos a arfar e a boca a fazer sons, durante uma meia hora, como se fosse um pavão a morrer. depois cansou-se e pediu desculpa nem sei bem do quê, aninhou-se em si mesmo e chorou um bocado.
o meu pai foi comer uma sanduíche e eu fiquei sozinho com um homem a morrer no quarto, não me lembro de gostar daquela casa onde morreu um homem a fazer sons tristes de fim biológico, como um pavão (a que soa um pavão, quando morre?) em tronco nu, a tremer um pouco, a chorar um pouco, sem se conseguir mexer. e pediu desculpa não sei bem do quê, não tinha de que o desculpar, não me apetecia tocar-lhe. havia homens que gritavam, no mar, antes que a água e a escuridão lhes enchesse os pulmões, ou homens em incêndios que berravam, numa esperança remota de salvação à última hora, mas aquele homem chorava sem lágrimas nos olhos e fazia um som, durante meia hora, calculo, que era igual aos sons dos pavões, quando morrem.
vi um pavão morrer porque o meu pai lhe cortou o pescoço, estava semi-nu, só de calças, os pés tão ridículos, no fundo das pernas, nada ali fazia com que sentisse compaixão, porque o meu pai me tinha matado os sentimentos há muitos verões atrás.

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