18/02/2013

expressão

trago na bebedeira memórias de outros locais, de putas, do hotel abandonado atrás do tribunal. os miúdos abrigavam-se da chuva onde tinha sido o cinema, abraçavam-se, beijavam-se. as putas olhavam os miúdos, passeavam, as saias quase nada, as meias altas, as bocas semáforos vermelhos junto ao hotel atrás do tribunal, junto à antiga sala de cinema onde ainda por acaso cartazes do último filme, em 1987. nem as putas nem os miúdos traziam nada semelhante a uma verdade, nada semelhante a nada. que desperdício. as imagens são um desperdício. à noite não há um único albatroz no céu, só tabaco e solidão e amargura e às vezes uma garrafa de qualquer coisa (brandy, whisky, anis, água). as putas passam e os miúdos passam, ou seja, podem ficar, mas passam. as imagens são como fotografias que anunciam uma espécie de movimento, mas acabam por remeter a um momento estático: "os miúdos abraçados, abrigados no cinema antigo" ou "a boca vermelha das putas". tudo parado, um bocado de tempo deslocado, inexistente, impossível. o que há é a falta de amor aos bocados, uma procura de braços, de alguém que seja um receptáculo de nós, de mim. uma mulher que seja uma nuvem, um campo, um bocado de argila, que não magoe mais, que não se fira na possibilidade de sair ela magoada no final. que não haja um final, digamos, na utopia que resta para sobreviver à praticidade de se ser aqui, neste ano, neste mês, depois de tudo o que veio antes (vieram as putas nas arcadas do hotel vazio, atrás do tribunal, tão deprimentes, com as bocas encarnadas, pequenos deuses a levar dinheiro por broches em becos escuros, homens de pé contra as bocas). trago na memória uma espinha de peixe a sair das costas, k+i=?, lembro-me de amigos da maneira como eram, antes de a vida os ter mandado todos embora, antes das reticências, dos parêntesis. lembro-me da escola, das cordas, das mãos, dos pescoços, das pedras. tudo imagens paradas, lembro-me de um homem de pé contra a minha boca, no escuro, os meus pais longe e eu pequeno, tão pequeno, tão inútil, sem amigos que me abraçassem abrigados do frio no cinema abandonado, ao lado do hotel por trás do tribunal. os homens trabalhavam no campo, comiam pão, o céu tinha nuvens e corvos e os tractores, porque tudo isto na província há uns anos atrás, pelas estradas e ao pé das árvores, nas várzeas, o rio seco no verão, apenas túneis de silvas e de cardos e um leito, uma cama vazia sem lençóis (nunca fiz nada no campo, fiquei sempre só estático, as mãos ao longo do corpo enquanto os outros corriam e apanhavam pêras e maçãs e subiam às árvores e cortavam uvas em setembro ou em outubro com as tesouras de poda, eu tinha medo dessas coisas, era frágil, era inútil, era fraco, ficava sentado ao pé das árvores a pensar em putas e a ver os corvos, a pensar nos pássaros que comiam as maçãs encarnadas como os lábios das putas e depois morriam porque as maçãs estavam pulverizadas com veneno. os corpos dos pássaros nunca apareciam, não caíam do céu, simplesmente se evaporavam, tornavam-se nada, angústia, solidão, tabaco. morriam porque as maçãs, as pêras, as ameixas, tudo envenenado, tudo com sulfatos e coisas tóxicas que os seres humanos depois lavavam ou descascavam, as cascas venenosas depois alimento de outros animais, porcos, cabras, galinhas, coelhos, mas esses nunca morriam por isso é possível que os pássaros também não).
trago amigos que morreram, quememataram ao entender mal as coisas, as mulheres que amei todas sozinhas ou seja eu sozinho longe delas, fraco, inútil, incapaz, com às vezes garrafas de qualquer coisa que queima a garganta, imagens iguais de putas/velhos/miúdos/arcadas/cidadesemchamas a vida inteira, ninguém a quem chamar e a culpa é minha
a culpa sempre foi minha ao longo da vida.
senhor doutor, a culpa sempre foi minha, não sou um arquitecto de mim mesmo nada bom e não devo ter pena de mim mesmo se toda a gente está longe e foge porque a culpa é minha e etc.

pouco de mim importa e pouco de mim é verdade mas ao menos as imagens metafóricas
das putas e das suas bocas
das crianças com os braços e as pernas feridos a tremer de frio
na cidade debaixo do consultório de psiquiatria
onde os comprimidos, a solidão, a amargura,
as palavras todas inúteis, sempre iguais, sempre a mesma coisa até um dia.
até um dia.

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