31/01/2013

incursão remota por um caminho que se pretende sério e factual

não sou o homem mais bonito neste café. e nem sequer de um ponto de vista da "beleza universal". está ali um indivíduo que faz mais o teu estilo e isso é que me interessa. isso há-de ser sempre o que me interessa.
posso tocar o sempre.
vês?
meu amor, vês?
o flanco todo ferido de anos e de dor e de solidão, de amargura e de desencanto a que me forçam. a que me forças.
ao menos que fosse o homem mais bonito neste café, para ti, mesmo sem aqui estares.

16/01/2013

laminar

não sei sequer se vou viver mais um ano - não quero sequer viver mais um ano - por isso, querida, hoje é para sempre.

12/01/2013

turbina


geralmente o amor é
como um capitalismo
em que uma das partes
detém o capital
e pode fazer o que quiser
à outra. dito correctamente,
a outra que se foda.

10/01/2013

memórias de um corpo esventrado #3

diz-me que coisa minha te posso dar, que podes receber da vida, sem mim... responde-me a sério. o amor pode ter murchado mas nem tu sabes isso com certeza. a solidão destrói-me como um livro guardado ao ar, numa estante, no Litoral Oeste, a ser consumido pela água, pela humidade no ar. a única coisa que resta é contar a respiração. respirar alto e ouvir, contar, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, até nem isso, já.
onde ficares é onde quero estar, longe de doenças e de cansaço, a ser eu, contigo. há muitos anos estive sozinho e foi mais ou menos bom, custou na mesma. nos dias de hoje não é possível porque te escolhi sem ter escolhido, a cabeça pesa-me de desalento e de angústia, as noites as noites as noites os dias os dias os dias, amor, os dias as noites. hoje não sei que dia é, os carros estavam molhados de gotas espessas e cheirava a podre na rua mas não ouvi chover, não sei se choveu.
estou incompleto e com uma alma cada dia mais pequena, mais incapaz. se ao menos uma nuvem lilás pela garganta abaixo...

09/01/2013

senior

qual é o lugar onde me sento? o que bebo? porque te esqueceste de mim? onde é que isto começa? onde é que isto acaba? porque é que há homens que aguentam uma tarde inteira num café, sozinhos? que pergunta é esta? o que é isto?
não posso beber mais nem posso tomar mais comprimidos nem fumar mais não sei como os homens aguentam felizes num café uma tarde toda não posso mais fingir que sou uma mulher quando escrevo textos não sou uma mulher nunca fui só acho que a sociedade nos inverteu os papéis as mulheres são frias e secas a única coisa fértil nelas é o útero de resto mais nada são os homens que sofrem por amor e talvez por isso escrevo como se fosse uma mulher tantas vezes porque ao menos quando escrevo como se fosse uma mulher não sofro por amor porque nenhuma mulher no mundo é capaz disso só são capazes de operações mentais exageradas enquanto os homens como eu ficam abandonados numa beira de rio metafórico que cheira mal a águas estagnadas enquanto lacraus e outros bichos lhes mordem arranham picam os pés e as canelas

eu
sou
um
homem
.

07/01/2013

Cândido não precisava de cadeiras

recordo-me por vezes de um homem que o meu pai matou, à noite, há muito tempo atrás. esfaqueou-o no pescoço e depois foi-se embora desse quarto. era noutra altura, numa casa grande e quase desabitada, escura, com as molduras tortas, nas paredes, a tapar manchas de bolor.
o homem ficou no chão, com a testa encostada nos tacos de madeira, agarrado ao pescoço, os dedos e as mãos sujos de sangue, os olhos a arfar e a boca a fazer sons, durante uma meia hora, como se fosse um pavão a morrer. depois cansou-se e pediu desculpa nem sei bem do quê, aninhou-se em si mesmo e chorou um bocado.
o meu pai foi comer uma sanduíche e eu fiquei sozinho com um homem a morrer no quarto, não me lembro de gostar daquela casa onde morreu um homem a fazer sons tristes de fim biológico, como um pavão (a que soa um pavão, quando morre?) em tronco nu, a tremer um pouco, a chorar um pouco, sem se conseguir mexer. e pediu desculpa não sei bem do quê, não tinha de que o desculpar, não me apetecia tocar-lhe. havia homens que gritavam, no mar, antes que a água e a escuridão lhes enchesse os pulmões, ou homens em incêndios que berravam, numa esperança remota de salvação à última hora, mas aquele homem chorava sem lágrimas nos olhos e fazia um som, durante meia hora, calculo, que era igual aos sons dos pavões, quando morrem.
vi um pavão morrer porque o meu pai lhe cortou o pescoço, estava semi-nu, só de calças, os pés tão ridículos, no fundo das pernas, nada ali fazia com que sentisse compaixão, porque o meu pai me tinha matado os sentimentos há muitos verões atrás.