31/07/2015

Filamento #4

sei onde começa e onde termina um certo charme, uma mentira cinzenta entupida de muito cabelo e cotão e pentelhos sobre o que sou, o que vêem que sou - o que ofereço do que quero que pensem que sou.
no intervalo disso, vou apodrecendo, vou fingindo estar a viver, ouço umas músicas que façam com que consiga ter perdido tudo o que perdi, tudo o que perco sempre.
era urgente que me enfiassem as tripas num liquidificador e as dessem de beber a um recém-nascido. "agora vais ter de crescer e viver com este gajo em ti, contigo, e pode ser que as coisas sejam melhores para os dois."

06/07/2015

iguana

fode-me a boca e no fim mija para dentro da garrafa de água vazia que tens ao lado da cama.
vai de meias à janela fumar um cigarro enquanto vou à cozinha lavar a boca de cuecas e
soutien. lava os dentes. coça os tomates. procura cuecas lavadas em cima da cadeira, no chão,
nas gavetas. dá alpista aos periquitos. liga a televisão, desliga a televisão, suspira.
enceta um pacote de cream cracker e come meia bolacha, bebe um copo de vinho branco,
queixa-te de que querias tinto ou whisky ou pelo menos brandy barato. tudo menos vinho
branco. mas acaba o copo, mete o copo no lava-louça, enche-o de água fria como se isso
enganasse a sujidade (na nossa cabeça engana).
chama o meu nome, pergunta-me se estou a cagar, vou-te dizer que não, "estou no escritório
a ver livros", responde que não preciso de ver livros, sou "o maior exemplo de poesia que já viste
e tocaste", e eu vou fingir que acredito, porque aparentemente a poesia é despejares os
colhões na minha garganta enquanto me agarras uma mama e me puxas o cabelo. eu respondo
"sim" e tu finges que acreditas que não estou a mentir. noto que o tempo demora a arrastar-se e
a levar as mágoas para longe de nós, que no fundo ainda trazemos as dores todas da vida nas
pernas e sobretudo imenso no tórax, nadando no oxigénio e no tabaco com que passamos
os dias.
aquece uma cafeteira, faz café, eu bebo uma chávena contigo, afinal, sou a poesia a mexer-se,
sou estrogénio e tu és testosterona e o periquito na gaiola é nem sei o quê; ambos sobreviveremos
ao periquito, cobardes demais para darmos um tiro nos cornos de uma vez, cobardes demais
para destruirmos a depressão com um prato de açorda de marisco
num restaurante à beira-mar

para reconhecermos que não servimos, que não somos poesia nenhuma, que só vamos
gastando uma vontade, uma tesão, e fingindo que o outro não sabe.