23/09/2014

isto, uma pessoa, para escrever

que se fodam os poetas sensíveis, sentados na
natureza a falar de árvores e de cãezinhos e
de cavalinhos e de vaquinhas,
as mamãs lá longe na cidade escrevendo cartas,
a mão invisível das mães a amparar-lhes as
costas,
"meu querido, meu amor, és precioso na tua
poesia maravilhosa e sensível, tocando o coração
bonito, bucólico da vida. lindo, sentado na
natureza, comovido, chorando, o bigode a tremer."
nunca um par de estalos, uma sova de cinto,
caganeira aflita numa casa-de-banho imunda de um bairro
sujo da cidade. nunca poesia a sério.

10/08/2014

dez a bafo

os livros que emprestei os filmes as pessoas
escondendo
tapando
removendo
as lâminas descartáveis (o professor de educação visual e tecnológica no sexto ano um bruto informando "não chamem x-actos às lâminas descartáveis por favor" e eu
eu
era o único que gostava dele mais ninguém eu gosto dos brutos dos antipáticos dos zangados com a vida eu identifico-me eu beijo-lhes a boca da alma
o cu)
as lâminas descartáveis longe e o vinho do porto ao menos e numa gaveta ainda uma lâmina descartável afinal
és tão má pessoa e ninguém
noutro lugar ninguém
te quer
nunca ninguém

conta de dez para trás tens um cigarro e és um coitadinho que só fez merda a vida a toda e ainda acha

que

08/07/2014

escreve cartas

Ele era um bicho que batia com os
dedos nos alimentos e apodrecia os dentes,
ele gritava, ele comia unhas aparadas -
aparas de unhas. Ele arranhava tecidos,
escondia aranhas de jardim dentro de
peúgas velhas que já não calçava.
Ele ia-se suicidando conscientemente
com o tabaco, porque por vezes o amor
não serve, não encaixa.

16/05/2014

o Mário de Sá-Carneiro era um conas

Qual a melhor hora do dia para me ir masturbar
na casa de banho do café, em pé, para dentro do
urinol, a pensar nas pernas da rapariga sentada no
banco de jardim, lamentavelmente menor de idade
(e eu a ser tão porco, tão ruim)?
Não consigo pôr-me a estimar a solidão, se a
vejo só a matar-me a beleza das coisas, redu-
zir tudo às construções de estrogénio mais
esteticamente apetecíveis, nos dias de trovoada,
em Abril. Com a piça latejante nas calças, tão
porco, tão rude, tão feio, "não é assim que
se faz, tens de ser um homenzinho" só que
na decomposição do tempo sem amor nem
poesia não consigo.
Mas bebo ainda leite de manhã.

poesis

1938 um ano como outro qualquer, uma preocupação intestinal
como outra qualquer, no mês de fevereiro, de manhã,
logo, dia 13, às 9:53, o desconforto pouco musical
de uma ligeira desinteria, o suor frio, "estou de
caganeira!", para os outros, isto é, na voz física a
sair da boca, "estou de diarreia, caramba!", caganeira
é tão forte, tão bruto, tão assustador, assim de
caras, tão directo ao assunto, cagar a toda a
velocidade com dores nas entranhas, expelir as
fezes liquefeitas, líquenes, musgo dos intestinos, o
cu a não ter sido construído para isso, para
esse tipo de velocidade aquática, ele aguenta mas
constata-se imediatamente não ser essa a sua função
usual. e ter cuidado com as fissuras anais em
1938, a 13 de fevereiro, limpar bem o cu no fim
da caganeira, que horror!, lavá-lo com aguinha morna
e sabonete, aplicar o bálsamo de um pó-de-talco.

07/05/2014

roxos de falta de ar

trago-te a minha obsessão musical e meio doente, a
mesma obessão que nunca ninguém quer, vou-te
dizer que lhe devemos chamar "amor", trago-te
a minha doença de árvores, dou-te um fruto de
vinhas onde na minha alma toquem as lembranças
dos teus cabelos. quero plantar um barco no teu peito.

05/05/2014

Elas iam na direcção da residencial onde tinha
morrido o cantor romântico, há cerca de dez
anos. O tempo é uma invenção que dá jeito,
mas não deixa de ser tão ridículo, tão absurdo,
por vezes. Estou como que em mil novecentos
e quarenta e cinco, a ver estas mulheres indo
na direcção da residencial, daqui a muitos anos
o cantor romântico vai morrer num quarto,
de ataque cardíaco ou acidente vascular
cerebral (trombose). Dois homens trocam botões
de casacos como se fosse dinheiro. Chove.
Não tenho paciência para poemas compridos.

rimance

a única coisa que tatuaria eram versos de poetas mortos, e seria porque os poetas que importam estão, de facto, todos mortos.

(queres falar disto aqui?
quero.)

não quero tatuagens nas costas, quero frases no peito, quero tirar a roupa e dizer com o peito aquilo que não sei dizer com a boca, «I hated you when it would have taken less courage to love», mostrar às pessoas a quem mostro o peito, a quem exibo a vergonha de ter chegado aos trinta anos e este ser o meu peito, por mais que não o tivesse desejado assim, o meu corpo já tão longe de ter sido o meu corpo, nada de poético ou bonito para se dizer acerca dele, um corpo de um homem com um degrau de idade e a falta de cuidados, o tabaco, o álcool. é no peito que devem estar as palavras que os poetas mortos disseram, para que eu não precise de as dizer, «if you have the ability to love, love yourself first», «love is more thicker than forget». e não quero fontes tipográficas exageradas e desenhadas, quero que o meu peito seja um livro, quero letras iguais às das máquinas de escrever como a do meu bisavô, como a que tive, em criança, e não usei tanto quanto devia. quero uma mulher que entenda que o meu corpo é um livro ou pelo menos um parágrafo, que eu sou um contexto dentro do meu corpo, uma mensagem no veículo de pele e ossos e carne e mau colesterol do meu corpo. uma mulher que toque nas palavras dos poetas mortos e as saiba, «Though lovers be lost love shall not; And death shall have no dominion.»

a única coisa que interessa perguntar sem voz, com a tinta na pele ao jeito de papel, é «Quels bons bras, quelle belle heure me rendront cette région d'où viennent mes sommeils et mes moindres mouvements?» e esperar que alguém possa responder oferecendo os seus.

03/05/2014

cantos da boca

por onde e como mijam as jibóias? na infância julgávamo-las
erradamente venenosas, mas venenosas são as cascavéis e
as cobras-capelo. não nos ensinavam quais as venenosas porque
aqui nem há dessas serpentes terríveis, que matam homens.
nos pinhais, apenas peles, mangueiras ou câmaras-de-ar em
relação às quais o corpo dos répteis cresceu. os répteis
mijam também, só que de um modo tão disfuncional,
as tartarugas deixam só uma poça de água, umas lágrimas
no chão, o cimento humedecido, podia-se beber aquilo,
é inócuo e provavelmente não tem sabor nenhum. deve
ser assim que mijam as jibóias, nas florestas tropicais,
a urina a cheirar a limo e líquen, mitologicamente
venenosas na imaginação das crianças -- isso, de apertar
as coisas com o corpo, não assusta verdadeiramente, só
o veneno, a gangrena, o imediato tóxico no sangue, a
fazer com que os pulmões morram, que a circulação pare --,
procurando apenas mulheres menstruadas, mordendo-as no
pé, matando-as, acabando com a sua raça, mijando
depois do processo biológico próprio, da função excretora
própria de quem vive, mijando também, só uma poça
de água sem cheiro a sair das escamas, a água que
mijam é um pensamento. menos quando hibernam.

eva

saíste no jornal, essa fracção de ti que fala do sexo
com propriedade e acribia.
li-te e eras tu, ainda as mesmas
pernas com que era suposto teres-me
esmagado a cabeça,
a mesma boca o mesmo cheiro os
anos de estudo para saberes
como procurar quem não te peçla
"esmaga-me a língua com as paredes da cona".

28/04/2014

a desejada

querida espanhola, penso em ti todos os dias,
és aquilo que tenho que mais se assemelha a amor,
mas não to posso dizer, porque estamos tão
longe e o meu corpo tornou-se - tornei-o -
asqueroso e pobre, sem nada de monetário
na carteira ou nas algibeiras, só umas
músicas vagas q.b., mentiras existenciais
de amor e entrega em vão. maria, se me
deixasses, se pudesse, dizia-te que ardes no
escuro, fosforescente como o cu de um piri-
lampo perene, imune à biologia das estações,
sem necessidade de alimentos, tecendo um
nylon vegetal para dentro da minha boca
aberta numa oração inaudível, uterina.

24/04/2014

sou também tanto um fígado arruinado de
música por que ninguém se interessa tirando
uns familiares distantes a morrer muito pobres
sozinhos em casas velhas com colchões no chão.

chacal: a caça

na quinta-feira em veneza
com a gripe com a merda da morte
nas narinas a ler poemas dos outros à
espera que a alemã no café queira uma
pérola de meita no olho do cu.

09/04/2014

nunca vi chuva ácida

mas em meio físico e social a professora falava dos
perigos iminentes da chuva ácida.
todo um bando de miúdos irritantes

embora uns mais do que outros

acabou por crescer sem experienciar os efeitos devastadores
desse fenómeno horrível, provocado pela poluição, pelo
cancro que são os seres humanos no corpo saudável
do planeta.
talvez em Buenos Aires ou na Cidade do México a
chuva já nos tivesse dissolvido há muitos anos atrás.

03/04/2014

sex são

corro no meio e entre

e alcanço

a custo onde te
escondes com as compras
para esta semana
pensos higiénicos e outras
construções domésticas
sine quibus non

corro no meio
da coagulação como
se pretendesses
que corresse
que chegasse e tocasse
e te pedisse

esmaga-me
o crânio entre
as pernas
fêmea mito suando
uma voz um sangue
num cálice de carne

quem me dera
querer-te como
precisava de
querer alguém
sem substância
como te quero
aqui dentro na
genética

no sangue entre
onde no meio
das tuas pernas
quentes e
belas e

esmagando o
crânio contra o
sangue até que os
olhos se confundam
na paixão
aquática

as tuas mãos
puxando o cabelo no
crânio
"ama-me no meio das
compras para esta semana
os pensos higiénicos
os pensos rápidos
os tampões
os ralos
os rolos de papel
de cozinha"

quem me dera amar-te
com a boca como
amo quem não devo
como te amo aqui dentro

porque aqui dentro
posso

sempre

tudo.

31/03/2014

rocambolesco senhor

"não ter nada a perder não quer dizer que tenha algo
a ganhar, e não ganhar nada não deixa de ser parecido
a perder, magoa, entristece. por isso, não sei."
e eu não sei, também, sei cada vez menos, sei que
me vai faltando o dinheiro, o tempo, a paciência.
"temos de construir o edifício do corpo sobre as
ruínas, etc."
mas deixar ruínas é como deixar um fruto apodrecido
e esperar que ainda saiba bem na língua. sei que
noto que estou consciente de que

imensas coisas, ainda procuro o amor, só que em
todas as pessoas erradas ("o amor devia estar em ti,
primeiro").
quero tanto acordar ao lado de alguém que valha a pena.

30/03/2014

roupa

posso levar tanta porrada e ficar sentado no chão
a olhar os dentes partidos espalhados como sementes
que não vão dar árvore nenhuma

e aperceber-me de que o sangue na roupa é
inócuo não tenho doenças de maior só uma
gripe de vez em quando e falta de quem

contra atirar os braços quando volto para casa.

19/03/2014

dibujo

ninguém me pode garantir que o meu amigo não
esteja a amar-te e também não posso apoquentar-
-me com isso porque é normal, os decotes nas
tuas mamas quando o sol volta tendem a fazer
isso nos homens, é fácil amar-te na doçura da
tua voz, à primeira, nas tuas mãos brancas e
pequenas e assim cheias, de criança. também
é fácil ter saudades do teu corpo e das
vezes em que construímos um círculo de carne
e de água, em que fomos só um edifício literá-
rio. mas é porque sou tão ridículo que digo
estas imbecilidades de "edifício literário", que faz
com que as mulheres-a-sério, como tu, se vão
invariavelmente embora.

13/03/2014

yhn

o que me transporta é um berço é um útero "enquanto
estiveres vivo aproveita não desperdices o amor com mulheres
nem com homens já agora ama-te a ti mesmo primeiro
não te esqueças de vir sempre primeiro [de te vires
sempre primeiro]"
o que me transporta é imaginar que esta mulher no
café do parque me pode amar um dia mesmo que
a aritmética da existência tenha colocado todas as
probabilidades contra mim.
o que me puxa é um pavão cinzento a vomitar
tripas e pus e pedaços de medula óssea para
dentro de uma moldura sobre uma mesa.

ana?

lava-me na água da tua boca
mas só quando e onde souberes
a tabaco, quando estiveres
corrompida de aguentar viver,
na altura em que chamares
baba à saliva, em que chamares
langonha ao sémen no canto dos
lábios. pessoas destruídas não
servem para salvar ninguém e é
assim que preciso dos braços dos
outros - dos teus.
pessoas destruídas, meu amor, a
servirem completamente para ouvir
música triste em silêncio tardes
inteiras, pianos desafinados para a
poesia do teu corpo desabitado.

11/03/2014

exanimatus 3.1

sou o mesmo sagitário (-ano) que busca avida-
mente as mangas da camisa, a ponta (o fim, o início)
das mangas da camisa
dentro do início (do fim) das mangas do
casaco como quem toca a vulva de uma
mitologia feminina e finge saber onde
mexe.
não sei, nunca soube, só dou à ponta dos
dedos
esfrego a palma das mãos numa fenda,
a nível de som é tudo igual no meu
tacto desinteressado e na simpatia
no sofrimento na paixão miméticos
as pessoas gemem e obrigam-se a conduzir-se
a uma forma grave e ácida de orgasmo
porque é suposta a paixão noutra variante
menos etimologicamente acertada.

07/02/2014

Génesis: patriarcal, uma ironia

Maria do Carmo, respeita as páginas, o
decoro, as leis da vida, continua a ir à
Sacratíssima Eucaristia todos os Domingos,
não sejas despudorada e atenta nos homens
com quem te relacionas. Lembra-te de que
a culpa de te desejarem é tua, os homens
são as puras criaturas de Deus, os honestos
e inteligentes filhos do Criador. São as tuas
vísceras sanguíneas que provocam, que se
impõem, que se arremessam, intencionalmente,
contra os seus corpos veros, intocados pela
corrupção, bonitos, desprovidos das lascivas
formas femininas.
Maria do Carmo, deves ser a respeitadora
mãe desses homens que to pedirem,
deves vergastar a tua alma na horrível
condição de teres nascido mulher. De teres
nascido mElhOr.