26/02/2013

romanesca

esquecera-me também de colaborar. há mais de dois meses que não enviava textos, não tinha o que enviar, porque não escrevia. e não escrevia porque se dava que tinha um nó no estômago há muitos anos - tantos, que podiam ser milénios (eram milénios). tinha um nó no estômago porque as mulheres, as crianças belas por quem me apaixonara tinham todas saído para outra sala, de onde as podia avistar de vez em quando, passando à porta, mas sem mais nenhum contacto, sem ser esse. dava-lhes por vezes encontrões com a mala, à saída do refeitório, pedia desculpa mas ninguém olhava para trás (é um desperdício de tempo e de saúde, olhar para trás). podia escrever "pedra", "faca", "lama". desenvolver. pensar "a hermenêutica, as bolsas linguísticas, o zeitgeist" e fazer dissertações muito sérias acerca de tudo isso. podia ligar a televisão e escrever "os leões no quénia" e escrever um poema sobre a humanidade dos animais vs. a humanidade das pessoas, fazer analogias, "todos nos comemos vivos uns aos outros como na selva sob o sol quente de África", a ponderar se escreveria África com maiúscula ou minúscula. se não me queixasse tanto talvez me convidassem para cafés, talvez me dissessem com carinho "gosto de ti" - talvez gostassem. se não me queixasse tanto talvez não sentisse um nó no estômago, talvez escrevesse, talvez na praia em S. Martinho do Porto, ao sol frio de inverno (não como o de áfrica), conseguisse escavar na minha carne a pessoa que sou - não a que devo ser, não a que gostava de ser, mas a que sou. escrever uma cadeira, mandá-la, "este mês não me esqueci, ainda estou activo, vivo, ainda sei fazer isto: tomem lá uma cadeira". escrever "a poesia serve para isto porque:" e enumerar, por alíneas. a poesia - a literatura - serve para isto porque é. pensar se devo escrever "É" com maiúscula ou com minúscula. pensar. distanciar-me das coisas todas, para poder escrever sobre elas, destruir a linguagem, a língua, alimentar-me de ar e de chuva e de bichos que não façam falta a ninguém, não deixar que me doa que se tenham ido embora (é provável que nunca tenha amado ninguém, que nem sequer saiba o que seja isso, porque nunca escrevi sobre outra coisa, e temos de nos afastar das coisas, para podermos fazer qualquer coisa com elas).
talvez este mês mande qualquer coisa, talvez este mês mostre que ainda estou vivo e escreva para ninguém uma coisa que se possa ler - como isto -, mas que não interessa absolutamente nada.

25/02/2013

"

o careca, a fufa, a miúda que estava com a fufa (acho que a fufa dava aulas no liceu, há uns anos), talvez a filha da fufa, portanto a fufa eventualmente nem sequer fufa, ou uma vez não, ou com uma seringa pela cona e, nesse caso, a companheira a meter a meita lá dentro e sempre fufa. a miúda é gira mas menor de idade e eu um homem feito, trinta anos e um coração despedaçado, a miúda no máximo uns catorze mas bonita, ao lado da fufa e o estúpido do careca a passear pelo foyer, "sou o dono disto", a ser o dono disto tudo, da madeira, do chão, das paredes, dos quadros, da tinta branca, das pessoas. o careca pode foder a miúda e ninguém lhe diz nada, ele é dono disto tudo; a fufa pode foder a miúda, é uma senhora de respeito e nunca ninguém vai saber, são amigas, a fufa tem coisas de adulto respeitável e culto para passar à miúda, mas se eu a fodesse na casa de banho deste café ia preso e deixava a criança magoada.
o meu coração despedaçado a procurar uma argamassa na cona menor de idade desta miúda e a deixar-lhe uma fenda, uma ferida num dos ventrículos metafóricos.

20/02/2013

y

já disse mais de mil oitocentas e trinta e cinco vezes que sobreviver é sub-viver. já disse tudo. já me queixei de tudo, da solidão, da angústia, da falta de amigos, de abraços, da culpa dos outros. já escrevi todos os textos que poderia escrever.
"o mundo está sobrepovoado", diz-me a colega de antropologia. por favor
mas por favor
deixem-me fazer a minha parte, nisso. obliterar-me daqui.

19/02/2013

cúbito no armário há vinte e sete anos

este é o século, o tempo. tudo o que tenho para dizer é nada, cabe numa linha, cabe numa mão pequena.

onde estão as mulheres que ainda me queiram, que ainda fiquem, que ainda permaneçam de noite e de dia, "rodeie-se das pessoas que gostam de si até aprender a fazê-lo sem ajuda de ninguém", onde é que estão essas pessoas? no espelho sou só uma doença e aos olhos dos que passam ao longo da minha extensão biológica também.

18/02/2013

expressão

trago na bebedeira memórias de outros locais, de putas, do hotel abandonado atrás do tribunal. os miúdos abrigavam-se da chuva onde tinha sido o cinema, abraçavam-se, beijavam-se. as putas olhavam os miúdos, passeavam, as saias quase nada, as meias altas, as bocas semáforos vermelhos junto ao hotel atrás do tribunal, junto à antiga sala de cinema onde ainda por acaso cartazes do último filme, em 1987. nem as putas nem os miúdos traziam nada semelhante a uma verdade, nada semelhante a nada. que desperdício. as imagens são um desperdício. à noite não há um único albatroz no céu, só tabaco e solidão e amargura e às vezes uma garrafa de qualquer coisa (brandy, whisky, anis, água). as putas passam e os miúdos passam, ou seja, podem ficar, mas passam. as imagens são como fotografias que anunciam uma espécie de movimento, mas acabam por remeter a um momento estático: "os miúdos abraçados, abrigados no cinema antigo" ou "a boca vermelha das putas". tudo parado, um bocado de tempo deslocado, inexistente, impossível. o que há é a falta de amor aos bocados, uma procura de braços, de alguém que seja um receptáculo de nós, de mim. uma mulher que seja uma nuvem, um campo, um bocado de argila, que não magoe mais, que não se fira na possibilidade de sair ela magoada no final. que não haja um final, digamos, na utopia que resta para sobreviver à praticidade de se ser aqui, neste ano, neste mês, depois de tudo o que veio antes (vieram as putas nas arcadas do hotel vazio, atrás do tribunal, tão deprimentes, com as bocas encarnadas, pequenos deuses a levar dinheiro por broches em becos escuros, homens de pé contra as bocas). trago na memória uma espinha de peixe a sair das costas, k+i=?, lembro-me de amigos da maneira como eram, antes de a vida os ter mandado todos embora, antes das reticências, dos parêntesis. lembro-me da escola, das cordas, das mãos, dos pescoços, das pedras. tudo imagens paradas, lembro-me de um homem de pé contra a minha boca, no escuro, os meus pais longe e eu pequeno, tão pequeno, tão inútil, sem amigos que me abraçassem abrigados do frio no cinema abandonado, ao lado do hotel por trás do tribunal. os homens trabalhavam no campo, comiam pão, o céu tinha nuvens e corvos e os tractores, porque tudo isto na província há uns anos atrás, pelas estradas e ao pé das árvores, nas várzeas, o rio seco no verão, apenas túneis de silvas e de cardos e um leito, uma cama vazia sem lençóis (nunca fiz nada no campo, fiquei sempre só estático, as mãos ao longo do corpo enquanto os outros corriam e apanhavam pêras e maçãs e subiam às árvores e cortavam uvas em setembro ou em outubro com as tesouras de poda, eu tinha medo dessas coisas, era frágil, era inútil, era fraco, ficava sentado ao pé das árvores a pensar em putas e a ver os corvos, a pensar nos pássaros que comiam as maçãs encarnadas como os lábios das putas e depois morriam porque as maçãs estavam pulverizadas com veneno. os corpos dos pássaros nunca apareciam, não caíam do céu, simplesmente se evaporavam, tornavam-se nada, angústia, solidão, tabaco. morriam porque as maçãs, as pêras, as ameixas, tudo envenenado, tudo com sulfatos e coisas tóxicas que os seres humanos depois lavavam ou descascavam, as cascas venenosas depois alimento de outros animais, porcos, cabras, galinhas, coelhos, mas esses nunca morriam por isso é possível que os pássaros também não).
trago amigos que morreram, quememataram ao entender mal as coisas, as mulheres que amei todas sozinhas ou seja eu sozinho longe delas, fraco, inútil, incapaz, com às vezes garrafas de qualquer coisa que queima a garganta, imagens iguais de putas/velhos/miúdos/arcadas/cidadesemchamas a vida inteira, ninguém a quem chamar e a culpa é minha
a culpa sempre foi minha ao longo da vida.
senhor doutor, a culpa sempre foi minha, não sou um arquitecto de mim mesmo nada bom e não devo ter pena de mim mesmo se toda a gente está longe e foge porque a culpa é minha e etc.

pouco de mim importa e pouco de mim é verdade mas ao menos as imagens metafóricas
das putas e das suas bocas
das crianças com os braços e as pernas feridos a tremer de frio
na cidade debaixo do consultório de psiquiatria
onde os comprimidos, a solidão, a amargura,
as palavras todas inúteis, sempre iguais, sempre a mesma coisa até um dia.
até um dia.

04/02/2013

4

nos vinte minutos que faltam pode
caber, toda, uma verdade muito con-
creta sobre estas coisas ilógicas, do
amor. guardar, durante anos, um lenço
de assoar com ovelhas, porque veio de
um par de mãos que estavam lá na
sua vida. e hoje lá estão, na sua
vida, mas é tudo diferente, porque,
agora, por um momento, fiz parte
dela e sei como ela é. e é linda.
era cego e vi. e resta estar cego
novamente.

01/02/2013

da falta

ainda vou aparando a barba como se viesses, ainda vou comprando pares de calças que não fiquem tão mal, como se reparasses. e os dias podem ser isto e podes já não mais querer saber, mas em todos os momentos tenho-te guardada como se guarda as coisas mais preciosas, mais valiosas das nossas vidas.
a barba cresce todos os dias e aparo-a de vez em quando, como se me fosses ver, como se falássemos. lavo os dentes e tomo banho e visto-me e durmo e como.

e caminho todos os dias como se caminhasse em direcção a ti mesmo que tenhas ido embora.

31/01/2013

incursão remota por um caminho que se pretende sério e factual

não sou o homem mais bonito neste café. e nem sequer de um ponto de vista da "beleza universal". está ali um indivíduo que faz mais o teu estilo e isso é que me interessa. isso há-de ser sempre o que me interessa.
posso tocar o sempre.
vês?
meu amor, vês?
o flanco todo ferido de anos e de dor e de solidão, de amargura e de desencanto a que me forçam. a que me forças.
ao menos que fosse o homem mais bonito neste café, para ti, mesmo sem aqui estares.

16/01/2013

laminar

não sei sequer se vou viver mais um ano - não quero sequer viver mais um ano - por isso, querida, hoje é para sempre.

12/01/2013

turbina


geralmente o amor é
como um capitalismo
em que uma das partes
detém o capital
e pode fazer o que quiser
à outra. dito correctamente,
a outra que se foda.

10/01/2013

memórias de um corpo esventrado #3

diz-me que coisa minha te posso dar, que podes receber da vida, sem mim... responde-me a sério. o amor pode ter murchado mas nem tu sabes isso com certeza. a solidão destrói-me como um livro guardado ao ar, numa estante, no Litoral Oeste, a ser consumido pela água, pela humidade no ar. a única coisa que resta é contar a respiração. respirar alto e ouvir, contar, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, até nem isso, já.
onde ficares é onde quero estar, longe de doenças e de cansaço, a ser eu, contigo. há muitos anos estive sozinho e foi mais ou menos bom, custou na mesma. nos dias de hoje não é possível porque te escolhi sem ter escolhido, a cabeça pesa-me de desalento e de angústia, as noites as noites as noites os dias os dias os dias, amor, os dias as noites. hoje não sei que dia é, os carros estavam molhados de gotas espessas e cheirava a podre na rua mas não ouvi chover, não sei se choveu.
estou incompleto e com uma alma cada dia mais pequena, mais incapaz. se ao menos uma nuvem lilás pela garganta abaixo...

09/01/2013

senior

qual é o lugar onde me sento? o que bebo? porque te esqueceste de mim? onde é que isto começa? onde é que isto acaba? porque é que há homens que aguentam uma tarde inteira num café, sozinhos? que pergunta é esta? o que é isto?
não posso beber mais nem posso tomar mais comprimidos nem fumar mais não sei como os homens aguentam felizes num café uma tarde toda não posso mais fingir que sou uma mulher quando escrevo textos não sou uma mulher nunca fui só acho que a sociedade nos inverteu os papéis as mulheres são frias e secas a única coisa fértil nelas é o útero de resto mais nada são os homens que sofrem por amor e talvez por isso escrevo como se fosse uma mulher tantas vezes porque ao menos quando escrevo como se fosse uma mulher não sofro por amor porque nenhuma mulher no mundo é capaz disso só são capazes de operações mentais exageradas enquanto os homens como eu ficam abandonados numa beira de rio metafórico que cheira mal a águas estagnadas enquanto lacraus e outros bichos lhes mordem arranham picam os pés e as canelas

eu
sou
um
homem
.

07/01/2013

Cândido não precisava de cadeiras

recordo-me por vezes de um homem que o meu pai matou, à noite, há muito tempo atrás. esfaqueou-o no pescoço e depois foi-se embora desse quarto. era noutra altura, numa casa grande e quase desabitada, escura, com as molduras tortas, nas paredes, a tapar manchas de bolor.
o homem ficou no chão, com a testa encostada nos tacos de madeira, agarrado ao pescoço, os dedos e as mãos sujos de sangue, os olhos a arfar e a boca a fazer sons, durante uma meia hora, como se fosse um pavão a morrer. depois cansou-se e pediu desculpa nem sei bem do quê, aninhou-se em si mesmo e chorou um bocado.
o meu pai foi comer uma sanduíche e eu fiquei sozinho com um homem a morrer no quarto, não me lembro de gostar daquela casa onde morreu um homem a fazer sons tristes de fim biológico, como um pavão (a que soa um pavão, quando morre?) em tronco nu, a tremer um pouco, a chorar um pouco, sem se conseguir mexer. e pediu desculpa não sei bem do quê, não tinha de que o desculpar, não me apetecia tocar-lhe. havia homens que gritavam, no mar, antes que a água e a escuridão lhes enchesse os pulmões, ou homens em incêndios que berravam, numa esperança remota de salvação à última hora, mas aquele homem chorava sem lágrimas nos olhos e fazia um som, durante meia hora, calculo, que era igual aos sons dos pavões, quando morrem.
vi um pavão morrer porque o meu pai lhe cortou o pescoço, estava semi-nu, só de calças, os pés tão ridículos, no fundo das pernas, nada ali fazia com que sentisse compaixão, porque o meu pai me tinha matado os sentimentos há muitos verões atrás.

27/12/2012

12

eu era um projecto inacabado no pretérito imperfeito
e desenhavam-me com giz branco em folhas azuis.

20/12/2012

21:05:55

andei o que o oxigénio nos pulmões me permitiu
andar, quinze (15) quilómetros, com a pulseira
fluorescente do hospital no pulso direito, a gritar
"Caso de urgência: 12230654, HCIS: 862101"
com uma dor horrível no ouvido esquerdo, na
veia ou na artéria do pescoço desse mesmo
lado. "estás todo apanhadinho do lado esquerdo,
homem!" estou todo apanhadinho do lado esquerdo,
homem. anêr, andrós (falta-me a grafia em grego).
homem, a quem me dirijo, destinatário e receptor
de uma mensagem, que é esta: andei quinze quilómetros (km).

11/12/2012

micro cosmos

que as mãos, a ponta
dos dedos, antes de
mais, nunca te cheirem
a mijo, a coisas
biomecânicas secas.

molusco

citar músicas, livros, filmes. livros. citar muita poesia e fazê-lo a nosso favor, sempre: "este indivíduo sabe tão bem o que quero dizer! o que quero dizer - o que sinto - é exactamente isto."
e é ao contrário. é fácil sentir isto porque se lê algures (porque se vê algures, porque se ouve algures) que "isto". e quando "isto", então, vive-se isto.
se alguém nos cobre de asas de borboletas mortas, é como se um silêncio porque incomoda e quando se cria uma imagem (imagine-se "cobrem-nos de asas de borboletas mortas") é geralmente para incomodar.
estamos sozinhos no mundo, ninguém quer saber, ninguém se importa. mais vale mesmo fingir que somos arte e que estamos, de alguma forma, em comunhão com qualquer coisa.

26/11/2012

composição

O Real Madrid está a dar na televisão. O
José Mourinho falou na televisão, porque é o trei-
nador do Real Madrid.
Para muita gente, isto é um poema, porque os
poemas cada vez mais se assemelham a compo-
sições de escola primária.
Expressões escritas.

22/11/2012

projecto para uma esquizofrenia menor

espero mesmo que chegues. anseio por que chegues. não planeio nada para depois, fico só contente com que chegues e fiques, os dias, esta coisa onde estou metido, são cada dia mais iguais, repetem-se, cometemos os mesmos erros vezes sem conta e já só contamos com desculpas, com perdões, porque, no fim, é só isso que temos. a seguir aos problemas é só isso que temos, o pânico da solidão, de ter de ficar a olhar, quietos, para um espelho de passado, onde as nossas mãos se tocaram e onde as nossas bocas quase se sugaram em desespero, sem causa. e isso é o fim do mundo, é a coisa mais parecida com o fim do mundo, logo, façamos com que o seja. os dias são todos iguais, é cansativo, mas ao menos podemos sofrer um pelo outro, podemos considerar que tudo vai desabar, que, se um de nós se for embora, o outro não tem mais razões de ser. preciso que chegues, que me digas "estou a ir ter contigo", de saber que já só falta meia-hora, cinco minutos, um suspiro de aves que morrem ou outra medida de tempo que nos apetecer criar. ao menos chega, ao menos aparece e não te apaixones por outra pessoa, porque vais ser o meu fim do mundo e isso não me interessa mudar.

14/11/2012

o que é normal é chorar

faz sentido falar de cultura e de literatura hoje?

há uns idiotas que vão julgando que sim. provavelmente, não. mas como somos uns idiotas que vão sabendo o significado quase "clássico" da palavra, manter-nos-emos idiotas. um idiota só o é aos olhos dos outros. e os outros estão sempre cegos perante o que é um idiota e que verdade encerra.